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Cultura do cancelamento: Linchamento on-line; consequências reais.

Cultura do cancelamento: Linchamento on-line; consequências reais.
Pedro Henrique Ribeiro
ago. 16 - 9 min de leitura
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Tendo crescido junto com a  internet, desde cedo, entendi que havia nela uma quantidade de liberdade muito acima da que poderia - com muito esforço - ser encontrada em nosso "mundo real". A permissão para agir de forma anônima ou sob perfis fakes, criou uma terra sem lei, que tanto poderia ser utilizada para o bem, como poderia ser usada para o mal, se para a primeira não havia bonificação, para a segunda não havia punição. 

Em resposta ao caótico anonimato de falas preconceituosas, surgiram os rostos e nomes daqueles que a proferiam e numa relação de causa e efeito, a punição tornou-se recorrente. Repentinamente, em muitos casos, poucas horas bastavam para que vídeos e imagens de desrespeito conseguissem viralizar na internet e forma surpreendente,  com o passar do tempo, a internet tornou-se a porta de entrada, muito desses conteúdos conseguiram grande destaque em tradicionais veículos de imprensa. 

A exposição, até então, era vista como a ação necessária de sociedades marcadas por fortes injustiças, tendo visto isto, somente pela veiculação do conteudo, de forma pública para uma parcela significativa da sociedade poderia-se alcançar, a partir de algum meio, justiça para os injustiçados e remissão - ou tentativa dela - ao (s) causador (es) da injustiça.  Uma ação coletiva liderada pela sociedade que estava on-line, trazia consigo uma reação, afinal, estamos falando de uma relação de causa/efeito. O efeito da ação, quase sempre um pedido de desculpas, fosse ele em vídeo ou texto, também, quase sempre, a exposição do desejo de aprender com o erro. Algumas desculpas eram tão ou mais problemáticas que o ato original de repúdio, mas independente da natureza do pedido, desse momento em diante, passou-se a observar um outro fenômeno, igualmente fruto de uma sociedade marcada por injustiça: O cancelamento, que futuramente seria ressignificado como Cultura do Cancelamento.

A lógica da exposição era simples: expor para esperar uma mudança, permitir que as consequências chegassem a superfície, ejetar uma causa, um movimento, uma ideia e expor as tantas injustiças sociais que vivemos. 

 Entendo que seja difícil ouvir novamente alguém que proferiu, em algum momento anterior, falas preconceituosas. Compreendo que não seja uma obrigação ensinar o básico da convivência respeitosa a alguém, mas fato é que, se queremos uma sociedade melhor, em muitos momentos, mesmo sem termos qualquer tipo de obrigação, devemos nos preocupar e cooperar na formação educacional de um cidadão que, não vive de forma individual os acertos e erros de sua vida, ainda que privada. O poder de influência segue um modelo exponencial, sendo assim maus cidadãos podem se multiplicar sob o olhar despreocupado dos bons cidadãos.

 Um racista "cancelado", sem acesso aos mecanismos de aprendizado, permanece um racista, só que agora, isolado.  O cancelamento público, seguido de linchatn deixou de falar, continuamos tendo um racista na sociedade, só que agora em silêncio Não queremos silêncio, queremos - ou deveríamos querer - silêncio de aprendizagem, seguido de falas de mudança. Não queremos - por mais DIFÍCIL que seja - um racista isolado em punição eterna, o que queremos é menos um racista, correto?

Para isso, por mais difícil que seja - perdoar qualquer ofensa é realmente difícil - precisamos permitir que os indivíduos tenham a oportunidade de mudar. A oportunidade tem de ser obrigatória, o que será feito pelo indivíduo diz respeito somente a ele, a nós, caberá sempre o dever de dar ao próximo a oportunidade de aprender novamente, ainda que ele não queira.

 Somente na vida em sociedade, lidando com diversos conhecimentos e pessoas, somos capazes de aprender a respeitar e conviver com a diversidade. A educação social não se faz de forma individual ao longo da vida, então por que a reeducação deveria ser? Se há alguém disposto a ouvir, então alguém deve estar disposto a falar.

Óbvio que cabendo sanções no âmbito jurídico, elas deve ser efetivadas, afinal, fazem parte da consequência, esperar uma ressocialização não significa tratar de forma inocente um agressor, ações consequenciais visando reparação e justiça devem ser realizadas e fim, ponto inegociável. O problema surge no momento em que o sofrimento do agressor passa a ser a causa principal da ação e não mais a mudança de atitude. Passa-se então, a alimentar uma máquina que tem como único propósito gerar agressões virtuais. Inicialmente apenas virtuais.

E o que antes era utilizado com o intuito de se conseguir algum tipo de justiça, torna-se uma verdadeira inquisição; atos criminosos  passam a ser tratados com o mesmo peso que divergências de opiniões. Racismo, machismo e LGBTQFobia, NÃO são, sob hipótese alguma opiniões, são CRIMES que anualmente MATAM MILHARES. Crimes e preconceitos não devem ser tratados como opiniões. Portanto, tendo base, coerência e não ofendendo, ameaçando ou agredindo ninguém, um pensamento diferente deve ser considerado, deve ser discutido, porque apenas através da pluralidade ações efetivas e criativas ocorrem, porém de forma assombrosa, cancelamentos por divergências opinativas são deliberados nas redes sociais. Não falo de uma agressão ou de uma ofensa, falo de uma opinião diferente, apenas. 

Estimulados pelo imediatismo digital e pela cobrança dos canceladores - que cancelam quem demora a falar -  muitos se jogam a falar no calor da pressão, erram, uma troca de palavras, uma frase mal colocada, uma nítida falta de preparo e conhecimento de causa, nada disso importa. Como a lâmina afiada de uma guilhotina, o cancelamento surge, sem dó, não há pena, não há remorso, há silêncio. A cultura do cancelamento caça suas vítimas com o auxílio de "fadas sensatas" que nada mais são que pessoas errantes, como eu e você, mas que disponibilizam-se a pensar como a maioria.

O cancelamento que começa no mundo virtual como o inofensivo bater de asas de uma borboleta, termina no mundo real como um verdadeiro furacão, não apenas para aqueles que sofrem com o ato, algo que falarei mais a frente, como também para toda a sociedade. Sobre cultura, o  antropólogo Edward B. Tylor cunhou a seguinte definição: "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. De modo que, quando falamos em uma cultura do cancelamento, falamos de um hábito que está adentrando na nossa forma de lidar com o espaço que vivemos e com as pessoas que nos cercam, fazendo com que a todo momento, de formas conscientes e inconscientes, diminuamos o espaço da pluralidade, do debate e do conserto.

 O espaço para o debate e para a crítica impessoal, vai paulatinamente desaparecendo, se some este espaço de discussão, corre-se o risco de também sumirem os diversos espaços destinados às pessoas plurais, que formam sociedades plurais em ideias, filosofias, discussões e atitudes.

Cancelamos também o erro, a falha e a incerteza, características que compõem a nossa humanidade - tanto em número social, como em traço característico -; aquilo que nos faz ser quem somos, que nos lembra de nossas imperfeições, passa a ser visto como a maior das falhas, quase como uma abominável mutação genética.

Não há espaço para o perdão, não há espaço para a reparação, o erro, torna-se cada vez uma característica dos outros e menos nossa. O cancelamento, ao retirar do convívio um ser errante, também nos impede de lidar com alguém que pode ser semelhante a nós, nos impede de lidar com quem somos. Buscam-se bodes expiatórios para a nossa purgação, para anular a nossa imperfeição.

Em um exemplo de linchamento real, cito o caso do estadunidense Emmanuel Cafferty, que em junho deste ano, enquanto retornava para casa, após uma longa jornada de trabalho, foi fotografado com a mão para fora de sua caminhonete estalando seus dedos, o ato registrado assemelhou-se ao sinal “OK”, utilizado por alguns grupos que pregam a supremacia racial nos Estados Unidos. Postada no Twitter, a imagem logo viralizou, no mesmo dia a empresa onde Cafferty trabalhava recolheu seus equipamentos e, em 5 dias, Emmanuel perdeu seu primeiro bom emprego, aos 47 anos de idade. O cancelamento tornou-se um linchamento real para Cofferty, que só conseguiu se explicar semanas depois de sua vida desmoronar. Após isto, o autor do registro também foi cancelado. A guilhotina foi impiedosa com ambos. 

Precisamos urgentemente tomar de volta para nós os sentimentos que nos tornam humanos, precisamos quebrar a idealização do perfeito, do inquebrável. Precisamos por fim as fadas que não são sensatas. 

Não, não somos alecrins dourados;

Sim, precisamos cancelar a cultura do cancelamento.


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