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Um ensaio sobre Sexo e Gênero

Um ensaio sobre Sexo e Gênero
Elisa Carletto
Sep. 17 - 15 min read
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      Apesar de um assunto cada vez mais debatido na sociedade, a diferença entre sexo biológico e gênero continua a ser confusa para muitas pessoas.

      Enquanto sexo diz respeito a um conjunto de características biológicas que as pessoas têm ao nascer — genitália, combinação cromossômica, composição hormonal e outras —, gênero trata de uma construção social sobre o que se entende quanto a masculinidade e feminilidade — características psicológicas, culturais e comportamentais que se associam a ser homem ou ser mulher.

      Portanto, a concepção de gênero não é inatamente biológica; em vez disso, tal ideia foi criada pela sociedade — ou, melhor dizendo, homens e mulheres são produtos da realidade social e não decorrência da anatomia de seus corpos.

"nonbinary" escrito com dados de letras

      Mas o que exatamente significa dizer que gênero é uma “construção social”?

      Bem, tendo em vista que construção social é algo que foi moldado pela sociedade e por normas culturais (ao invés de pela biologia), pode-se afirmar que basicamente todas as partes da nossa sociedade são construções sociais. Dinheiro, por exemplo, só existe e tem valor porque nós coletivamente decidimos acreditar que ele possui valor — e o fato de ele ser uma imaterialidade não faz com que sua influência seja menos factual do que a de algo concreto.

      Assim, por mais que gênero seja fruto do imaginário coletivo, isso não o impede de ter impactos reais em nossas vidas — como nos chamam, como nos tratam, o que espera-se de nossas vestimentas, que tipo de futuro pressupõe-se que teremos e assim por diante. 

      Ainda sobre gênero como construção social, West e Zimmerman falam sobre como na cultura ocidental o gênero é nada mais que uma característica emergente das interações humanas cotidianas.

      Esses autores falam sobre “fazer gênero”, que seria o gênero como “um ato rotineiro incorporado na interação do dia a dia” — ou, como melhor explica Judith Butler, a performance de gênero de um indivíduo se resume a espelhar comportamentos associados a masculino e feminino de acordo com as expectativas da sociedade sobre o que é apropriado para sua categoria sexual.

      Desse jeito, pessoas com o sexo “macho” aprendem na vivência social que devem se expressar como o que é entendido por masculino, enquanto pessoas com o sexo “fêmea”, por feminino — e são essas performances de gênero que definem os conceitos de homem e mulher para a sociedade.

      O sexo como binário — macho XY e fêmea XX — é o álibi para as construções de gênero, que então se apresentam como expressões ou consequências quase naturais do sexo; macho XY é homem e fêmea XX é mulher.

      Esse pensamento é a base para o binarismo de gênero e é comumente reforçado no movimento feminista — Simone de Beauvoir, por exemplo, fundamentou suas teorias na “experiência vivida” — “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.

      Contudo, o gênero não é binário e tampouco o sexo.

 

foto de um poster colado na parede - é o desenho de um computador sorridente e os dizeres "binary is for computers"            Binarismo é para computadores

 

      O sexo, que é definido pela biologia, não pode ser considerado binário, pois não existem apenas dois sexos.

      Intersexual é o termo usado para descrever pessoas que nascem com características biológicas que não se encaixam nas categorias típicas do sexo feminino ou masculino.

      Há diferentes classificações de intersexualidade, pois ela se manifesta a partir de combinações entre morfologia genital externa (vagina, clítoris, pênis e testículos), características sexuais secundárias (pelos, desenvolvimento das mamas, altura, musculatura, barba e outros), arranjo genético (XX, XY, XXY, XXXY, XXYY, XX com genes masculinizantes — gene SRY — ou XY sem os genes masculinizantes) e gônadas (ovários, testículos e ovotéstis — gônada com característica de ovário e testículo). Para exemplificar, uma pessoa com insensibilidade a andrógenos (tipo de intersexualidade) tem vagina, clítoris e mamas, mas internamente tem testículos no lugar dos ovários. Ou então, uma pessoa com criptorquia bilateral (outro tipo de intersexualidade) tem pênis, mas seus testículos não produzem testosterona o suficiente para desenvolver barba e voz grossa.

      A intersexualidade é comum na sociedade, com expressividade de 1,7% na população mundial — praticamente a mesma presença de ruivos, cuja porcentagem varia de 1 a 2% em pesquisas.  Isso significa que é completamente comum e normal ter características “mistas” e que o binarismo do sexo é uma grande ilusão — tão absurda quanto afirmar que só existem pessoas loiras e castanhas.

      Ignora-se a existência de pessoas que não se encaixam no sistema dual de sexo masculino e feminino por conta de normas culturais e discriminatórias que descartam a possibilidade de o binarismo do sexo não ser real, pois isso acarretaria na também admissão de gênero como não binário. 

      O mundo em que vivemos é altamente investido social, política, financeira e cientificamente na divisão dos seres humanos em categorias definidas por pênis ou vagina — e, dessa divisão de sexo, segue-se a designação binária de gênero.

      Mas o binarismo de gênero vai muito além das expectativas sociais de que mulheres cuidem das crianças e que homens trabalhem no escritório; os aromas disponíveis, o formato de roupas íntimas, as atividades de higiene pessoal (como depilação e maquiagem), quais pedaços de pano devemos vestir e a divisão de banheirostudo é categorizado e separado de maneira a reforçar a segmentação entre o que chamamos de homem e mulher.

 

Poster colado na parede, escrito "binary is for computers" acima de um desenho de um computador sorridente

 

      Ou seja, nós primeiro pegamos pequenas divergências naturais de estrutura corporal e então as ampliamos — mantendo sempre a ideia de que homens e mulheres são fundamentalmente diferentes uns dos outros com base em sua biologia. Assim, depois de decidirmos que há essa “enorme” diferença corporal entre um lado do espectro sexual e outro, nós criamos um sistema de divisão estrito de normas sociais e de expressão de gênero que reforça essa distinção arbitrária entre os corpos masculino e feminino.

      Não é que não haja diferenças observáveis entre os corpos ou que a distinção entre seres humanos com e sem a anatomia necessária para gerar uma criança seja irrelevante. Mas é que as diferenças param por aí, e usar a anatomia do nascimento como justificativa para o binarismo de sexo e gênero não é honesto — ainda vemos mulheres cisgênero inférteis como mulheres e homens cisgênero inférteis como homens. Uma mulher que teve câncer de mama e retirou seus seios não deixa de ser mulher, do mesmo jeito que um homem sem a capacidade de produzir espermatozoides continua a ser homem. Isso ocorre porque o gênero — o sentido interno de quem você é — existe independentemente de seus órgãos genitais.

      A expressão de gênero seria, então, a simples maneira com a qual um indivíduo se porta na sociedade. Porém, com os estereótipos de sexo e gênero, as pessoas são induzidas ou até mesmo forçadas a se portar de acordo com o que esperado do alinhamento sexo-gênero. Pequenas variações de comportamento são esperadas dentro das duas classificações homem e mulher, mas há quem destoe tanto de o que é presumido da sua identidade de gênero que acaba se classificando como parte de outro grupo — e essas são as pessoas transgênero.

      O fenômeno de não-alinhamento com o gênero designado ao nascimento é muito comum na história da humanidade e se manifesta de diferentes formas — os que migram de um extremo para o outro (por exemplo, uma pessoa que foi presumida como homem mas se entende como mulher — nesse caso, uma mulher trans) e os que optam por não se identificar com nenhum dos dois extremos ou então com os dois ao mesmo tempo (pessoas não-binárias, que negam a ideia de gênero como existente em duas faces).

 

"nonbinary" escrito com dados de letras coloridas            "Não-binário"

 

        E esse conceito de mais de dois gêneros não é algo recente. Os incas adoravam um deus representativo de um terceiro gênero e os xamãs usavam roupas andróginas como “um sinal visível do terceiro espaço que negocia entre o masculino e o feminino, o presente e o passado, os vivos e os mortos”.
        Os mahu, do Havaí, eram pessoas de sexo biológico masculino ou feminino que expressavam o terceiro papel de gênero, negando ou abraçando ambos masculino e feminino simultaneamente, e possuíam papel sagrado de educadores na sociedade.
        Em Madagascar, os sakalavas eram crianças do sexo biológico masculino criadas como meninas cujos traços físicos, considerados femininos, eram sinal de proteção divina.
        O povo Bugi, do sul de Celebes na Indonésia, reconhece três sexos (masculino, feminino e intersexual) e cinco gêneros: homens, mulheres, calabai, calalai e bissu - calabai são do sexo biológico masculino e expressão de gênero feminina, calalai são do sexo biológico feminino com gênero masculino e bissu são o “gênero transcendente”, abrangendo todos os gêneros ou nenhum

 

Sete bonecos lado a lado, transicionando do rosa para o azul, de quem está com vestido para quem está com calça, gradualmente, mostrando o extremo "feminino" em oposição ao "masculino"Bissu, do quinto gênero da cultura Bugi, que desempenham papéis religiosos e são comparados aos sacerdotes.

 

        Mas o não-binarismo não foi algo exclusivo de sociedades indígenas. O conceito de sexo biológico e gênero como livres também existiu em partes da Europa Ocidental antes do século XVIII e do surgimento do pensamento iluminista.

        Foi no Renascimento que o gênero, assim como a classe, foi hierarquizado de acordo com ideias de qualidades inerentes ao nascimento. Então, do mesmo jeito que uma pessoa nascida na nobreza era inatamente superior a quem nasceu no povo, as pessoas de sexo biológico “homem”, com comportamentos e traços masculinos, passaram a ser vistas como elevadas. Nos séculos XVIII e XIX foi quando começamos a ver uma forte codificação binária de sexo e gênero.

 

máquina de escrever com um papel escrito "gender roles"            "Papéis de gênero"

 

        Em On the Origins of Gender Roles: Women and Plough, os autores Alberto Siena, Paulo Giuliano e Nathan Nunn argumentam sobre a ligação direta entre a colonização e a divisão de gênero. Eles mostram que as sociedades marcadas pela agricultura de arado possuíam atribuições de regras de trabalho mais bem definidas (homens no campo e mulheres no lar), o que acabou por gerar a crença de que o papel apropriado e natural da mulher é em casa. Mesmo depois de a economia sair da agricultura, tais convicções se mantiveram, o que afetou e afeta até hoje a participação de mulheres em atividades fora de casa, como mercado de trabalho, empreendedorismo e política.

        Diversos estudos levantam a hipótese de que as culturas descendentes de sociedades que trabalhavam com agricultura de arado hoje possuem dinâmicas de gênero menos igualitárias. Ou seja, sociedades com papéis agrícolas mais tradicionais tiveram menos igualdade de gênero e definiram um estrito binarismo entre homens e mulheres ocupando espaços diferentes e, com o aumento das colonizações por parte dessas comunidades, houve a busca por regular e padronizar as práticas agrícolas, o que acabou acarretando na solidificação dos papéis de gênero como binário.

 

            Igualdade real não é possível se nós não celebrarmos nossas diferenças

        No fim, tanto o binarismo de gênero quanto o de sexo são conceitos culturais equivocados que falham em traduzir a identidade das pessoas, o que as faz sentir a necessidade de transicionar de gênero e, às vezes, de sexo para poderem se sentir confortáveis com a própria expressão de identidade.

        A experiência trans não é mais ou menos certa do que a experiência cis — são apenas duas vivências diferentes de ser humano. Ao invés de a sociedade entender essa variação no espectro de gênero como uma realidade igualmente válida de expressividade, temos a marginalização e a patologização de tais diferenças, buscando maneiras para dizer que as experiências menos comuns de gênero são, de algum jeito, menos certas ou naturais.

        As tentativas sociais, culturais e políticas de ignorar e abandonar identidades não faz com que as pessoas subitamente mudem e passem a se identificar de outra maneira. Essa resistência de reconhecimento apenas dificulta a vivência social desses indivíduos, de modo que eles permaneçam existindo às margens da sociedade ou até mesmo deixando de existir (seja por se forçar a viver infeliz, nunca se expressando como realmente deseja, seja por literalmente perder a vida).

        Nós precisamos de um sistema de classificação que seja granular o suficiente para incluir a todos — homens, mulheres e pessoas não-binárias com pênis, vagina ou ambos — sem estigmatização ou sutilezas para justificar invalidação. Pessoas existem em todos os tipos de corpos, expressando todos os tipos de gênero, sem a história de “corpo errado”. Se uma mulher possui um corpo com pênis, então aquele é o corpo de uma mulher, pois é o corpo no qual uma mulher existe. Uma mulher trans que não passou pela cirurgia de transição de sexo não está tentando ser mulher, vivendo como mulher ou escolhendo ser mulher. Ela apenas é. Como disse Sophie Labell, “Eu sou uma menina. Este é o meu corpo. Meninas têm todos os tipos de corpos.”

 

Eu não sou uma menina no corpo de um menino. Eu sou uma menina. Este é meu corpo. Meninas têm todos os tipos de corpos.“”

 

        Nossa compreensão científica, social e cultural do mundo aponta, conforme aumenta, para o sistema binário de sexo e gênero como incapaz de descrever a variação humana natural que sempre existiu e muito provavelmente sempre existirá, independentemente de quantas vezes alguém na internet diga que só existem dois gêneros, dois sexos e uma maneira de ver o mundo.

        Devemos e precisamos considerar alternativas de como refazer nosso sistema de atribuição de sexo, rever a importância formal que damos a isso em documentos e acabar com as expectativas de gênero que criamos de acordo com tal designação. A indefinição até que o indivíduo possa comunicar seu gênero de maneira clara é potencialmente melhor do que anos ou décadas de danos colaterais por termos atribuído alguém de maneira incorreta ao nascimento.

        É insustentável alegar que um conjunto genital automaticamente representa uma categoria social de sexo ou gênero.

 

 


Para saber mais sobre tratamento de pessoas não-binárias, leia Linguagem Neutra, um conhecimento essencial na atualidade.


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